Logo de cara você percebe que chegou atrasado.
Você chega atrasado, escancara a porta e logo na primeira cena a impressão que fica é que aconteceu muita coisa antes mesmo de você chegar.
Tudo que é mostrado na primeira cena indica que muita coisa aconteceu antes mesmo de você chegar e, como pegou o bonde andando, sente dificuldade em entender o que se passa naquele momento.
Observa que uns caras numa lanchonete discutem sobre a política de dar gorjeta para garçonetes, enquanto outros discutem questões filosóficas, como o preço do Big Mac em vários lugares do mundo e a aplicação de massagens em pés alheios.
Você presta a atenção em tudo que é falado naquele momento. Analisa os pontos de vista e, assim como qualquer um daqueles caras que dividem a mesa, concorda ou discorda com o assunto em pauta.
Mesmo assim, se sente perdido.
E sabe qual é o pior de tudo isso?
Essa é a última preocupação do Tarantino. Entregar a ficha corrida de cada personagem de mão beijada, ou fazer com que eles conversem com você e não com o outro personagem em cena, são as últimas coisas que o diretor fará por você.
Vai por mim, será o melhor favor que alguém fará por você.
Até aqui a gente chegou atrasado, pegou o bonde andando e a história já está rolando muito antes disso.
A gente se pergunta como é que o Tarantino faz para nos contextualizar, sem precisar fazer com que um protagonista escale uma montanha sem proteção alguma, logo no começo do filme, pra gente entender que ele é forte, corajoso e destemido?
A resposta é muito mais simples do que a gente imagina. É sempre assim né?
Nosso querido diretor aposta nos diálogos.
Sim, é verdade.
Esses papos de bar são responsáveis por, não só apresentar os personagens, como indicar suas características e modus operandi.
Temos em Pulp Fiction um bom exemplo.
A cena que abre o filme é de um casal conversando sobre seguros de bancos contra assaltos e como isso torna qualquer intenção de roubo por lá pouco lucrativo. A moça, sempre interessada, vê o rapaz a convencer de que, devido a essas circunstâncias, roubar um restaurante seria mais lucrativo, pois nenhum restaurante faria um seguro contra o roubo.
O casal toma um café, conversam, discordam, e estão lá, como um casal que trocam juras de amor, se beijam e anunciam o assalto.
Ninguém daquele restaurante, inclusive a gente, esperava por essa. E isso acontece devido a como o diretor encaminhou a cena.
O casal conversava sobre assaltos e não sobre assaltar.
Essa percepção faz toda a diferença.
Em momento algum eles soltaram aqueles jargões “vamos assaltar”, “você trouxe as armas?” ou o clássico “esse será o nosso último serviço”, como se tivesse falando com a gente e não com quem divide a cena.
Por isso, mesmo acompanhando o desenvolvimento do papo sobre assalto, a gente se surpreende com o anúncio do mesmo.
O Tarantino entende que não precisa te pegar pela mão e explicar tudo que planeja. Ele sabe que você pode fazer isso por si só.
É aí que você entende a diferença entre diretores.
Enquanto uns tentam te convencer que a história é boa, outros simplesmente as contam, cabendo a você julga-la.
Corta a cena para os Bastardos Inglórios.
Os bastardos estão num bar com sua agente dupla, dividindo o mesmo ambiente com soldados alemães.
A tensão proposta na cena é a descoberta de suas identidades e, para isso, são provocados a todo o momento, desde o jovem alemão bêbado até o capitão, que está em um ambiente diferente desse mesmo bar.
Nós sabemos que o capitão está desconfiado do grupo e também sabemos que os bastardos estão tensos naquele ambiente, afinal de contas, estão em linhas inimigas, como infiltrados.
Por isso, o Tarantino resolve testar o limite de todos através de um jogo de adivinhação (dica, repare que há um motivo especial para que o capitão faça com que todos virem seus drinques).
Percebemos a postura passiva agressiva do capitão, a impulsividade de um bastardo e a leveza no comportamento que toda a agente dupla deveria ter.
Tudo isso através de um simples jogo, o que a sequência do que viria bem mais convincente, do que se fosse antecipado por um monólogo do tipo “desconfiei de vocês desde o momento que entraram aqui”.
Isso acarretaria, novamente, com a sensação do personagem estar se justificando para o espectador e não para o outro personagem em cena.
Bora para um último exemplo?
Em Cães de Aluguel, um grupo de homens se encontra numa lanchonete conversando sobre diversos assuntos, desde o verdadeiro significado de Like a Virgin, da Madonna, até a política de pagamento de gorjeta.
Vamos focar nesse segundo assunto, o pagamento da gorjeta.
Ao longo do filme notamos a tensão entre dois personagens da trama: Mr. Pink e o Mr. White. O primeiro é o mais questionador e desconfiado do grupo quanto ao traidor que os entregou para a polícia. Já o segundo, é mais compassível, preferindo não se arriscar antes de ter certeza de algo.
Quando Mr. Pink discursa, de maneira prepotente, o quanto é contra a política de gorjeta, reparamos que o Mr. White discorda prontamente do fato, o repudiando.
Esse entrevero dá indícios de como seria a relação de ambos com o decorrer do filme, sem a necessidade do Mr. White dizer algo como “sabe cara, não gosto de você”,
Novamente, o diretor opta por nos jogar todas essas informações logo de cara, através de seus diálogos, ao invés de pegar na nossa mão e explicar passo a passo quem é quem, com direito a todos os “comos” e “porquês”.
Dessa maneira, ele nos obriga a participar mesmo do filme, a prestar atenção em cada cena e em tudo que é dito, para que possamos entender aonde ele quer chegar e, aí sim, acompanhar a história.
Dito isso, a que ponto chegamos com esse bonde que já estava andando?
O Tarantino é um grande diretor por nos apresentar essa ótica? Também. Mas, o mais importante nisso tudo, é entendermos a diferença entre filmes que tentam nos convencer sobre aquilo que se conta e filmes que se preocupam em contar uma boa história.
Afinal de contas, um filme se torna muito mais divertido de se assistir quando nos convida a participar da história, deixando toda a parte de descoberta, discussão e julgamento com a gente.
Abraços.