Lembro-me bem. Vinte de março de dois mil e dezoito. Final de tarde, um dia frio e nublado. O destino era o mesmo de sempre: a faculdade. Da Zona Norte à Zona Sul, o ônibus 917H passeava por toda a Grande São Paulo. Cruzar uma das maiores cidades do planeta de ponta a ponta é um exercício de paciência e estratégia. Paciência, já que a viagem pode levar até 2h30. Estratégia, pois você pode justamente tornar todo esse tempo útil.

Entre as opções: ouvir músicas do John Mayer no fone de ouvido e se sentir num clipe musical; jogar “Clash Royale” e acabar com a carga do seu smartphone; ler um livro enquanto o ônibus se movimenta e acabar com dor de cabeça; contar moedas e ser roubado; ouvir “NerdCast” offline e ocupar toda a capacidade de armazenamento – já que seu celular de última geração possui incríveis 8G de memória.

E se, por acaso, decidir fazer tudo isso – juro, tempo não é um problema – vai acabar passando-se por idiota, sendo roubado, com dor de cabeça e um celular sem bateria para chamar ajuda. Plano perfeito!

Naquele dia em específico, leria um livro. Assumindo a possível e provável dor de cabeça, o belo e infanto-juvenil “O Hobbit” deveria servir como passatempo. Foi então que entrei no ônibus e logo sentei. Nem mesmo atravessei a catraca. A mochila foi para o chão e vi que o primeiro assento ao lado direito – aquele individual – estava livre.

Com ela no chão e o livro aberto nos braços, começo a leitura. Antes mesmo de terminar a primeira página, percebo que aquele ônibus só podia ser um spawn de pessoas. Havia brotado do chão umas cento e cinquenta – talvez esteja exagerando um pouco. Mas nem sabia que era permitido trafegar com tantos passageiros e, num piscar de olhos, éramos uma maquete da China.

“Não vou levantar daqui por nada. Se bobear, é capaz de surgir alguém debaixo do banco e tomar meu lugar”. Fechei até a janela para não entrar mais ninguém. Duas horas em pé com uma mochila lotada e um livro na mão não seria fácil. E não foi! Eis que, próximo à avenida Dr. Gastão Vidigal, entra uma mulher segurando um bebê.

Seguindo meus princípios, convenço-me a levantar e ofereço meu lugar a ela. A moça, que estava acompanhada de uma amiga, deveria ter uns 38 anos de idade. Parecia a mãe do Chico Bento, das histórias do Maurício de Sousa. Cabelo escuro, ondulado e preso. Calçava uma sandália marrom, vestia bermuda jeans e uma blusinha branca. Curiosamente, reparo numa pinta ao lado esquerdo do rosto. E, é claro, o bebê. Uma menina com aproximadamente quatro ou cinco meses de idade.

Enquanto a amiga, que era loira e vestia uma camisa vermelha, se posicionava em frente ao meu ex assento, Ruth – como vamos chamar a mulher – agradece-me e toma o lugar. Fico ali parado, a poucos metros. Não nego que ainda havia em mim a esperança dela descer rápido e eu voltar ao meu amado banco. Não aconteceu!

Minutos depois, em frente ao colégio estadual Ciridião, um idoso levanta do assento preferencial e vai em direção à mulher – chamaremos o homem de Joaquim. Eis que acontece um diálogo interessante que vou contar a você. Não que eu tenha o hábito de prestar atenção na conversa dos outros – até tenho – mas ficar duas horas e meia confinado com várias pessoas é inevitável.

Joaquim, aproximando-se, diz apenas uma palavra: “Aproveite!”. Meio que sem entender, Ruth sorri. O homem, com cerca de 1,70m de altura e cabelos totalmente grisalhos, vestia uma camisa azul e um casaco da mesma cor; além de uma calça jeans bege, óculos antigo e sapato marrom.

Seguindo o sorriso de Ruth, Joaquim explica que ela deveria aproveitar ao máximo essa fase com a filha. “O tempo passa rápido e não volta”. A saudade da infância de seus dois filhos ainda lhe toca o coração e se faz presente todos os dias. Hoje, segundo ele, já são formados em medicina pela USP e trabalham na área de urologia.

O idoso, em determinado momento, revela seus 83 anos de idade. Percebo um leve sotaque em algumas palavras – talvez uma influência portuguesa. Joaquim, sem dúvida, devia ter sido um moço bonito quando jovem. Rosto bem definido e bela postura. Aposentado há 32 anos, continua trabalhando para manter a cabeça no lugar.

A conversa, que mais parecia um monólogo, chegara num momento delicado para Joaquim. Casado há 54 anos, teve os dois filhos urologistas e dois netos – um menino de 15 anos e uma menina de 14 – com sua amada. O nome dela não foi revelado, apenas que era funcionária pública e trabalhou por 30 anos como enfermeira no Hospital das Clínicas.

Em 2003, sua mulher foi diagnosticada com câncer de mama e precisou passar por cirurgia. Tudo certo. Mas, treze anos depois, a doença retornou, espalhando-se para o pulmão. Mesmo recebendo o melhor tratamento possível, nada evitou o pior. Faleceu há dois anos, deixando seu Joaquim sem rumo.

Enquanto Ruth escuta, os olhos do homem já estão vermelhos e marejados. Falar sobre isso é nitidamente dolorido para ele. Por coincidência, na mesma época, fazia um ano da morte de minha avó. De um jeito ou de outro, senti  a dor de Joaquim e passei a entendê-la.

Durante alguns minutos, ele listou algumas qualidades e características de sua mulher que o fazia continuar apaixonado por ela. E a cada declaração póstuma, uma lágrima.

Ruth apenas observava e concordava fazendo sutis gestos com a cabeça. E quando houve uma brecha, finalmente disse algo: “Deus tem um plano pra cada um e dará conforto para o seu coração”.

Seu Joaquim não diz nada. Limpa os olhos, respira fundo, agradece. A conversa durou apenas 15 minutos. Os próximos sessenta segundos, puro silêncio. Apenas troca de olhares. Os dedos brancos e enrugados do idoso passam levemente pelo botão que solicita a parada do coletivo. Ruth também se levanta.

Os dois descem no mesmo ponto – metrô Vila Madalena – mas seguem direções opostas. Talvez nunca mais se encontrarão em vida. Quem sabe as palavras trocadas tenham mudado suas percepções. Ou jamais voltarão a se lembrar daquele breve episódio. Quinze minutos perdidos pelo tempo.

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