Noite de céu estrelado. A volta para casa é longa e, ao consultar o horário na tela trincada do meu celular, já passa das 22h30. O calor e o mormaço são elementos que não deixam a data escapar de minha memória. Cronologicamente, o evento que vou descrever em instantes aconteceu quatro dias antes da nossa última história sobre a conversa de uma mãe e um idoso – estamos no dia dezesseis de março.  

Próximo à estação de metrô Ana Rosa, espero pacientemente o ônibus surgir no horizonte de luzes e asfalto. Lá vem ele. Algo dentro de mim torce para que não seja um daqueles totalmente fechados, com ar condicionado fraco. Morrer por asfixia não era algo que planejava para aquela noite. Daria tudo – tudo – por vento no rosto. Voltar para casa olhando a paisagem e sentindo os cheiros de São Paulo, mesmo que nem sempre sejam bons. 

Qualquer glitch que me fizesse fugir do calor seria válido. Orei, de coração, e pedi a Deus que me desse essa alegria. Jamais precisaria de sorte novamente, se aquilo me acontecesse. O calor estava derretendo meu cérebro e embaralhando minhas ideias. Era como se estivesse num filme de Clint Eastwood. Eis que, finalmente, posso avistar janelas – que sorte a minha. Braço erguido, subo no ônibus.

Minutos depois, próximo ao CEAGESP, já estou devidamente sentado no último assento – e juro que não serão todas as histórias dentro de transporte público – quando dois homens entram no coletivo. Um deles, que chamaremos de Renato, devia ter 1,80m e cerca de 35 anos de idade. Cavanhaque no rosto, vestia camisa e bermuda branca, além de um boné preto de aba reta. Já Lucas, o outro rapaz que também não sei o verdadeiro nome, aparentava ter apenas 20 anos e sua altura não chegava a 1,75. Vestia uma camiseta salmão, calça jeans escura e um boné preto normal, de aba curva.

Renato estressado, bate o bilhete único com força em frente ao cobrador. Atravessa a catraca com agressividade e, com a cara amarrada, esbraveja sozinho. Lucas vem na sequência, mas sem dizer uma palavra sequer. Os dois ficam de pé, bem em frente a mim, enquanto Renato segue xingando alguém que ele chama de “Nóia”. Levo um tempo até perceber o que estava acontecendo.

Renato se envolveu em uma briga em frente ao box 111 do CEAGESP e tirou sangue ao acertar um soco no nariz do nosso querido Nóia. E se orgulha disso. Tendo em vista sua raiva, não duvidei nem por um segundo que aquilo realmente tivesse acontecido – e muito menos pensei em questioná-lo. Lucas, durante todo o discurso do companheiro, permanece passivo, ouvindo e concordando.

É preciso dizer que, naquela quinta-feira em específico, estava nas últimas páginas do excelente livro-reportagem Holocausto Brasileiro. A narrativa me prendia a atenção como jamais imaginara. Entretanto, a conversa entre os dois homens conseguiu interromper a leitura. Olhos no livro, ouvidos atentos.  

Renato, com seu sotaque nordestino, conta que Nóia havia parado o carro no meio do caminho para conversar com um japonês, dono do tal box 111. Segundo ele, pediu com educação para que tirassem o carro para seguir viagem, mas recebeu a seguinte resposta: “Vai, passa por cima. Tira o retrovisor pra você ver o que acontece”. Lucas interrompe e pergunta: “E você tirou mesmo o retrovisor, né?”. Renato confirma.

Os dois finalmente conseguem se sentar, no banco a minha frente e de lado para a porta traseira. Renato percebe que há uma mancha de sangue em sua bermuda branca – o que corrobora com a história que contou – e ri disso. Lucas acompanha nas gargalhadas. Eis que Lucas recebe uma ligação e pede para Renato fazer silêncio. A pessoa do outro lado da linha, por algum motivo, não podia saber que eles estavam juntos. O garoto diminui o volume de sua voz e trata a pessoa com respeito. Não cita nenhum nome ou grau de parentesco. A ligação se repete duas ou três vezes em seguida.

Nos momentos entre ligações, Renato continua com xingamentos e diz que Nóia mora “no fim de Osasco” e sai pra trabalhar às 10h da manhã – o que dá a entender que eles já se conhecem. A ideia seria aparecer às 9h em sua casa. Em diversos momentos, ele repete a frase “eu vou matar esse nóia” e “vou mandar um dos meus caras lá”. Apesar das barbaridades, Lucas parece nem prestar atenção em seu parceiro. O jovem, vidrado no celular, troca mensagens por Whatsapp com “neguinha linda” – como o contato está gravado em seu celular.

Lucas comenta que ao chegar em casa ainda se arrumaria para ir em uma festa de aniversário. Renato aproveita para dizer que não dorme sem fumar seu cigarro e, segundo ele, não fuma os de “marca porcaria”. Sairia para comprar mais, já que o seu maço acabou, e oferece carona.

Curiosamente, Lucas recusa a gentileza. Como se tivesse medo de algo. Seu companheiro lhe convence: “Fica tranquilo, eu passo em frente a sua casa quando você estiver saindo e a gente finge que é coincidência”. Talvez a pessoa das ligações fosse a mesma que não deveria saber do paradeiro dos dois.

Dúvidas e mais dúvidas em minha mente. Será que eles sairiam juntos aquela noite? O que aconteceria depois? Quem era a pessoa do telefone? Por que Lucas estava com tanto medo? Renato faria algum mal a Nóia no dia seguinte? Perguntas que nunca terei respostas. Começo então a bolar teorias. E se Lucas é filho de Renato e sua mãe, abandonada no passado e ainda com mágoas, não aprova o encontro dos dois? E se “festa de aniversário” era uma gíria para outra coisa? E se Renato realmente fosse no dia seguinte matar Nóia?

Desde o momento em que eles subiram no ônibus, havia passado cerca de 40 minutos. Já desceria no próximo ponto, mas não queria deixar de escutar o fim da conversa.

Minha mente, que já estava um turbilhão com todo aquele cenário, entrou em choque com a próxima frase de Renato para Lucas: “Você chegou a ver o ‘três oitão reforçado’ que eu comprei aquele dia?” Petrificado, nada mais no mundo tirava minha atenção daquela conversa. E continuou: “consegui por três pau e meio só”.

Levanto-me o mais devagar possível, solicito a parada do ônibus e anseio para que uma fila gigantesca de carros prolongue um pouco mais aquela viagem – mas naquele dia, ao contrário de todos os outros dias, não havia trânsito. Desço logo. Talvez eu tenha gasto toda minha sorte em um ônibus com janelas.

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