O dia findou e, com ele, o sol escondeu sua magnitude no horizonte. As sombras da noite já tomavam as ruas de São Paulo. Faróis acesos, as luzes brancas e vermelhas preenchiam a grande avenida. Os postes de luz, como numa tentativa desesperada, amenizavam o que era impossível esconder: anoiteceu.

Começo essa crônica no passado, pois é sobre ele que falaremos. O passado que se fantasia de amigo nostálgico, mas o mesmo passado que se assume um monstro ladrão do tempo. O que fica na memória e o que nunca deveria ter saído dela.

Hoje, um passo de cada vez, subo a rua que sempre subi. E, por isso, guardo recordações das outras vezes. Se antes subia ao voltar da feira com sacolas e mais sacolas nos braços, acompanhado de minha avó, agora estou sozinho. O que passou, passou. Só fica a luta interna de não deixar morrer dentro de mim o que sobrou dela: minhas lembranças.

Subo mais um pouco e as pernas já sentem o cansaço. Talvez se tivesse investido meu dinheiro em academia ou praticar algum esporte toda semana, seria diferente. Talvez. A chuva que acabara de cessar dificulta ainda mais o atrito do meu tênis com o paralelepípedo molhado.

O tênis, aliás, é preto em grande parte. Branco só a língua, os cadarços e as três listras da Adidas na lateral. Ele foi comprado há cerca de dois anos, mas carrego comigo todo santo dia, em cada passo. Foi presente de minha avózinha. Ah, como eu daria tudo para subir essa ladeira mais uma vez com ela. Não importa o peso das sacolas.

Olho para o alto – já com os olhos marejados – e percebo, um pouco mais a frente na íngreme ladeira, um rapaz sentado na guia da calçada. Confesso que fico apreensivo e desconfiado. Apertei o passo. Nunca fui assaltado, mas nem tudo na vida precisa ter sua primeira vez.

Aproximo-me e desvio o olhar para evitar problemas. Com a visão periférica, percebo que o homem está concentrado em abrir uma sacola do McDonalds. Passo tranquilamente, mas cinco metros a frente, ele me chama. “Hey, psiu”.

Viro o rosto esperando o pior. Minhas mãos, já cerradas, estão preparadas para dar um golpe certeiro na mandíbula. Paro e pergunto em tom firme: “O que foi?”. E a resposta não poderia me surpreender tanto: “Você é católico?”.

Confuso, respondo que não. E, pela primeira vez, enxergo a pessoa que está ali na minha frente: cerca de 55 anos, magro, pele bem clara, barba por fazer, roupa gasta, cabelo negro e curto. A calça era preta e a blusa azul marinho. Ao abrir a boca, percebo que não possui nenhum tipo de cuidado com a higiene bucal.

Os braços enfiados em uma das sacolas puxam uma camiseta amarela com estampa gigante de Maria Aparecida. Enquanto isso, ele faz sua proposta.  Poderia me “dar a camiseta por algum trocado”. Ou seja, vender. Digo que comigo só tem o dinheiro da passagem. Recebo um “tudo bem”, mas continuo a conversa.

A curiosidade para descobrir o porquê daquele homem estar jogado na calçada e revirando sacolas foi mais forte do que qualquer outra coisa. Ele começa a contar que achou aquele lanche do McDonalds, mas não estava muito bom. Comeria mesmo assim.

Naquele oito de maio, conversamos mais ou menos por dez minutos. E, curiosamente, o rapaz confiou-me parte de sua história. Seu nome? Ezequias. Apesar de estar na Zona Norte de São Paulo, sua casa e família estão em Franca, no interior do Estado.

Casado há cinco anos, mas já com sua esposa há dezoito, Ezequias tem três filhos com ela: Matheus, de 16 anos; Sarah, de 7; e Isaque, com apenas 3 anos de idade. Não ficou claro a última vez que voltou para casa, muito menos a frequência desses reencontros.

Inicialmente, veio para a capital com uma equipe de pintura, mas houve um desmanche e acabou sozinho. Nunca conseguiu outro trabalho. Arrancar matos de calçada e pedir ajuda com mantimentos é o que o mantém vivo hoje.

Ezequias faz questão de dizer que é “nascido e crescido evangélico”, assim como sua esposa que já é batizada nas águas e agora está cuidando dos filhos. Mão no bolso, puxa sua carteira. Ao abrir, vejo uma nota antiga – talvez de cinco mil réis. Um tanto emocionado, mostra a foto de seus filhos – foi quando soube de seus nomes e idades. Além das fotografias, a carteira também guardava sua certidão de casamento.

No entanto, o homem havia dito que tinha três filhos, mas notei que guardara o registro de quatro crianças. Antes que ousasse perguntar, ele logo começou a me explicar com a voz embargada. “E esse aqui é o meu tesouro. Um anjo”.

A quarta criança, um menino, chamava-se Tiago. Há sete anos, Ezequias estava em casa quando sua mulher foi a uma loja que ficava na rua de baixo. Ela precisava comprar alguns mantimentos e, para acompanhá-la, o segundo filho do casal: Tiago, na época com três anos de idade.

Minutos depois, pessoas de todas as partes vieram chamar por Ezequias. Assustado, o homem só ouvia os gritos e barulhos de sirene. Saiu depressa. Correu como nunca antes. Tropeçando em suas próprias pernas, quase que por teletransporte, materializou-se na frente da loja da rua de baixo.

Era o fim.

Sua esposa havia feito as compras e, já no caixa, comprou um doce de morango para Tiago. Antes mesmo do menino, com os olhos brilhantes e alegres, pegar o singelo presente, o telhado da loja rompeu e caiu sobre a criança. Em um golpe fatal, o objeto acertou a nuca e a cabeça de Tiago, esmagando seu cérebro.

Quando Ezequias chegou no local, ficou paralisado por minutos. Não podia – e nem queria – acreditar. O lugar estava lavado pelo sangue e tomado por luzes azuis e vermelhas do resgate. Só se ouvia o burburinho da multidão que o cercava e o choro de uma mãe desolada.

De lá pra cá, Ezequias teima em voltar pra casa. “O lar ficou menos lar”, confessa. Já processou a loja que, segundo ele, deve mais de 300 mil reais. Entretanto, na tentativa de atrasar ao máximo o acerto de contas, os empresários já recorreram três vezes. O processo está em Brasília, mas o dinheiro é o que menos importa agora. Nada pode devolver o que ficou no passado.

Momentos antes de se despedir de mim, Ezequias diz que sua mulher, vez ou outra e regada a muitas lágrimas, ainda arruma as roupinhas do filho falecido. Nossa conversa termina quando o homem aponta os olhos para o chão e sussurra: “mas tudo vai melhorar, Deus é bom”.

Embasbacado, continuo minha jornada. Subo a ladeira com a mente agitada. Confesso que naquela noite não dormi plenamente. Penso, afinal, na maneira como via o passado. Via. Não vejo mais. Tragédias acontecem, nem sempre as coisas são como queremos. Mas o que faz do passado um vilão, e o que pode torná-lo herói? Talvez a diferença esteja justamente na maneira como o enxergamos.

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