Noite de lua minguante, céu sem nuvens. A cada curva do ônibus 917H, o vento golpeia meu rosto cansado. Tudo bem, é sexta-feira. A gratificação está logo na próxima esquina, penso eu. Olho para o pulso do senhor ao lado – afinal não uso relógios e quero evitar a fadiga de pegar o celular no bolso – e os ponteiros já estão prestes a se reencontrar no topo.

O braço vira suporte, a janela travesseiro. Não sou de dormir no transporte público, sinto-me inseguro, mas quando as costas doem e as pálpebras pesam, não há raciocínios e preferências. Ajeito-me de forma que não atrapalhe a viagem do companheiro de assento, nem que ele perturbe meu sagrado cochilo.

E quando todo meu corpo já está devidamente aconchegado, tranquilo para descansar, penso que nada poderia privar-me de alguns minutos de sossego. Infelizmente, esqueceram de avisar meu cérebro. O danado não aceita a derrota. Um turbilhão de pensamentos vão de Charles Chaplin aos exoplanetas e probabilidade de vida fora da Terra.

Tudo estava em condições ideais para dormir, mas fui vencido por um pedaço de massa cinzenta serelepe. Inconformado, não dou o braço a torcer. Nem queria mesmo. Ele quer brincar comigo? Vamos lá, vamos brincar então. Ouvir a conversa dos outros até cansá-lo.

Desde sempre, uma característica sobre mim, escuto conversas alheias. Não por falta de educação ou por não ter o que fazer – talvez sim -, mas pelo fato do meu cérebro querer abraçar o mundo e prestar atenção em tudo a sua volta. Quando era criança, evitava ao máximo ir a festas de aniversário ou locais cercados por pessoas. Até hoje, se passo muito tempo em lugares com muita gente, depois preciso de pelo menos um dia para ficar isolado em meu quarto. Como se precisasse “recarregar as energias”.

Se ele não permite meu sono, não o deixo em paz. Decidi sobrecarregar ainda mais o sistema. Passo a ler a conversa no Whatsapp da pessoa a frente, reparar na blusa de lã roxa que começa a desfiar bem nas costas do rapaz em pé, na bela aliança dourada da senhora sentada no banco preferencial e tantos outros estímulos.

No banco seguinte, uma mulher diferente. Não sei seu nome, portanto será Cíntia – tem cara de Cíntia. Ela fala ao celular com a amiga Fernanda sobre estar profundamente nervosa. O motivo é uma briga com um colega da faculdade e, quando ela começa a explicar o ocorrido, a ligação cai.

Para aproveitar o momento em que Cíntia está desocupada, um homem sai do banco de trás e senta ao seu lado. Ela toma um susto, mas logo percebe que é um rosto amigo. Pedro, como imagino que seja seu nome, já a conhece de outros carnavais e os dois se cumprimentam com beijo no rosto. Pelo que entendi, estudaram juntos.

No intuito de ilustrar melhor, preciso dizer que os dois estão na faixa dos 23 a 25 anos – a garota parece ser um pouco mais velha. Cíntia tem cabelo crespo e preso, usa blusa cinza com capuz, bolsa rosa estampada, calça preta e piercing na orelha. Já Pedro, deve ter cerca de 1,90 metros de altura, loiro, muitas espinhas no rosto e veste calça jeans, tênis preto e camisa vermelha.

Pedro diz que estava esperando ela desligar o telefone para interagir. Sim, ele usa a palavra “interagir”. Ela ri. “Nossa, quanto tempo”, emenda a garota. Durante o diálogo, descubro que ele estuda Jogos Digitais na FIAP. Cíntia não sabe onde fica e Pedro tenta explicar: “depois da Vila Mariana, linha verde escura”.

A mulher pergunta se ele ainda “vê as meninas” e o garoto confirma. “Ainda mora por aqui?”. Mais uma vez ele responde que sim. Pedro comenta sobre ter escutado ela xingando ao telefone. Cíntia diz que, num trabalho em grupo da faculdade, um cara era simplesmente insuportável. Segundo ela, o moço falou para o grupo entregar o trabalho manuscrito, mas ela respondeu: “Já viu alguém entregar um projeto à mão para o cliente?”.

A treta se estendeu quando o tal “homem insuportável” respondeu – com o perdão da palavra – da seguinte forma: “então vai cagar”. Ela ficou muito nervosa e o tirou do grupo. Pedro concorda com o que ela fez e, rapidamente, se despede e desce do ônibus.

Cíntia volta a falar com Fernanda. Ri alto no momento em que se dá conta do que fez. “O cara vai ter que começar sozinho, do zero, o trabalho inteiro e todas as contas”, explica para a amiga ainda em gargalhadas.

Neste momento, a mãe de Cíntia liga no celular da filha, que opta por desligar a chamada com Fernanda e atendê-la.  Duas simples perguntas: “onde você está e por que não me ligou?”. A garota explica para a mãe e volta, mais uma vez, a falar com Fernanda. Conta para a amiga que passa por dois lugares, durante o percurso até sua casa, em que o sinal do celular desaparece.

Deu certo! Mente desgastada, corpo cansado, melhor cenário para meu cochilo. Encosto novamente o rosto no vidro da janela, olho para fora e percebo: tenho que descer no próximo ponto.

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