O último final de semana marcou o início da primavera e, pontualmente no mesmo dia, meu aniversário. Momento de parar e analisar o saldo das coisas que me aconteceram e, principalmente, do que fiz em minha vida. Em quem eu me transformei. Durante todos estes anos, houveram oportunidades nas quais aproveitei sem pestanejar e, claro, as que escorreram por meus dedos. Todas, entretanto e sem exceção, serviram para meu crescimento.

Passei a semana toda contando os dias para a chegada do sábado. Como não sou muito fã de bolo, apesar de comer de vez em quando, minha querida mãe faria algo especial em minha homenagem. O dia seria de fondue com chocolate derretido e aquecido na panelinha preta e prateada, pronto para os mergulhos do morango, do abacaxi, da manga, cereja e uva.

O que já era bom e agradava meu estômago podia ficar ainda melhor: minha namorada e sogra confirmaram presença. Passar tempo com a família sempre foi meu “melhor rolê”. Não seria diferente.

Alguns dias antes, entretanto, recebi um convite no grupo do WhatsApp chamado “Ratos da Dengue”. O nome se refere à Associação Desportiva Ratos da Dengue, meu time no ensino médio. Havia sim interesse em rever meus colegas, mas não posso negar que pensei na possibilidade de não comparecer. Um dos motivos era claro: minha família ia se reunir em casa para meu aniversário, minha ausência não faria sentido.

Assim que refletir por alguns dias, reconsiderei. Não via meus colegas há anos e o evento começaria às 8h da manhã – daria tempo de ir bem cedo, jogar o primeiro jogo com eles e voltar para casa antes que toda minha família chegasse em casa para meu aniversário. Decidido.

Apesar do pomposo “Associação Desportiva Ratos da Dengue” realmente parecer uma agremiação, tudo não passava de piada interna. O nome surgiu na época do colégio durante prova de biologia, na qual a pergunta sobre transmissor da dengue foi respondida com a lendária frase: “devemos acabar com os ratos, vetores da dengue”.

Depois de um rapaz da classe cometer a gafe e o professor fazer questão de ler para toda turma, o nome do time que disputaria o campeonato interclasse não podia ser outro: nascia o Ratos da Dengue. Logo fizemos questão de encomendar o uniforme, ou melhor, o Manto do Ratos.

Guilherme Pinheiro com o Manto do Ratos da Dengue (Foto: Lucas Lima)

É bem verdade que futebolisticamente não encantávamos, afinal a maioria estava bem acima do peso ou tinha asma ou as únicas atividades físicas na vida foram cosmologia e levitação de objetos com ondas sonoras – ou a soma de todos estes fatores. Nosso forte sempre foi o carisma. Já fizemos hino oficial, vídeo clipe e até álbum de figurinhas ilustrado com os “atletas”. Uma pena que ele, o tal do carisma, não evitara as inúmeras goleadas sofridas pelo time dos nerds.

Acordei cedo, vesti o Manto e a chuteira. O ônibus 8677-10 deixou-me na avenida principal. Andar pelo caminho que fiz durante três anos e que já não o fazia por outros quatro trouxe um sentimento de nostalgia inimaginável.

Tudo no percurso parecia igual ao de anos atrás. A mesma padaria, a mesma praça e a mesma casa com um lindo rottweiler no quintal. Até a coleira vermelha do animal parecia a mesma de antes. Só eu, ali, que era diferente. Tanta coisa aconteceu, tanta coisa mudou dentro de mim.

Chegando ao destino, atravessei a catraca e vi rostos familiares. Relembrei os velhos tempos e as peripécias de antigamente. Atualizei-me sobre as novidades de meus velhos conhecidos. Alguns casados, outros morando por conta própria no interior e até os que fazem duas faculdades ao mesmo tempo. Cada um seguiu seu rumo.

Em certo momento, distanciei-me das pessoas e do evento. Junto ao meu amigo Guilherme, resolvemos primeiro dar uma volta nas dependências do antigo colégio.

Ao sair da quadra e passar pelo pátio, atravessamos uma porta que nos deu acesso ao corredor. Tudo igual, exceto uma mini estação de rádio. A sala técnica que, é o rádio laboratorial dos alunos, não existia há alguns anos. Ela, se bem me lembro, era um almoxarifado.

O corredor com pintura predominantemente verde-clara mantinha o aspecto que guardava em minha memória. Algumas salas do lado esquerdo e uma espécie de varal do lado direito. O cordão de barbante expunha atividades de arte dos atuais alunos: ponto de fuga.

Comentei com Guilherme:

—  Lembra quando eram os nossos pendurados aí? – a resposta não podia ser mais sincera

— Claro que lembro! Quase repeti de ano por essa atividade.

No fim do corredor, subimos as escadas. Cartazes de divulgação de universidades por todo canto. O colégio sempre priorizou a preparação para entrar na faculdade, apesar de valorizar desproporcionalmente as aptidões em exatas. Nunca fui excelente com números.

Não era o mais acolhedor dos ambientes. Apesar da nostalgia, não necessariamente sentimentos bons retornavam a minha mente. A segregação e o convívio diário tornaram difícil a tarefa de socializar. Ainda agravada por minhas próprias escolhas. Tanto que, no final das contas, nem compareci ao dia da formatura. Havia passado por coisas, que não vem ao caso dizer agora, que me encorajaram a manter a discrição. Isolei-me.

Cada cantinho daquele lugar, portanto, representava sentimentos. Sejam eles bons ou nem tanto…

O espaço dispunha de armários para auxiliar os alunos que faziam o ensino médio regular de manhã e o curso técnico no período da tarde. Como só ficava até meio-dia, não vi necessidade em gastar quase R$ 300 por mês para ter uma gaveta azul exclusiva. Passamos por eles e, surpreso, pareciam novos. Conservadíssimos.

A soma do peso dos livros devia passar dos 50kg – pelo menos na época era o que meu exagero acreditava. Para não carregá-los todos os dias e acabar corcunda, cheguei a dividir um armário com um colega. Ele ofereceu que guardasse meus livros de graça, não recusei. Não sei ao certo o que aconteceu depois, mas um dia algo que fiz não o agradou. Resultado: o garoto, dono do armário, arrancou todos os meus livros e os deixou do lado de fora. No chão, meus livros foram expulsos da casa azul e voltaram para minha mochila.

Enquanto lembranças pipocavam, finalizávamos uma volta completa nos corredores.  Ao descer as escadas, saímos em frente à cantina. Guilherme e eu, como nos velhos tempos. Impossível não lembrar do nosso marcante e lendário Coxinha’s Day. Toda sexta-feira, como um abraço de consolação por mais uma semana, descíamos até a cantina e o pedido era sempre o mesmo: coxinha. Saindo de lá, para completar o tour, passamos pelo auditório.

Pra não dizer que não falei das flores. Nome da peça de teatro que minha turma produziu no fim do segundo ano. O tema era o período do regime militar brasileiro e contava a história de um pai e uma filha. A duração era em torno de 1h30 e a apresentação dia 07 de novembro de 2014. Apresentamos 5 vezes: quatro aos alunos e uma, já no período da noite, aberta aos pais e amigos.

Todo o processo de roteirização, atuação, divulgação, iluminação e sonorização do espetáculo foi feito por nós. Os ensaios começaram meses antes, afinal, tudo deveria estar perfeitamente alinhado. Poucos sabem que nunca conseguimos passar toda a peça nos ensaios. Alguns – e eu era um deles – já trabalhavam e saíam assim que a aula acabava. Ensaiamos cena por cena, mas a primeira vez que fizemos a peça de ponta a ponta foi também a primeira apresentação do dia, já com plateia.

Peça de teatro, em novembro de 2014 (Foto: Isabela Silva)

O campeonato em si, o que menos importava, manteve tradições. Há anos sem ver uma bola de futebol, a maioria do nosso time não lembrava mais nem como correr. O Ratos da Dengue jogou quatro partidas antes de ser desclassificado: 3 a 0, depois 4 a 0, então um 2 a 0 e por fim outro 2 a 0. Nenhuma vitória, nem um gol sequer – claro, se não considerarmos os que foram contra a própria meta. Deu a lógica.

Reparei mais uma vez, antes de ir embora, em cada um dos meus antigos colegas. Alguns mudaram pouco, outros tanto. E quem diria que eu fosse sentir saudade? O “eu” de três anos atrás jamais pensaria que isso fosse possível. Reencontrei colegas, professores, amigos, lembranças e sentimentos. O maior reencontro daquele dia, mesmo percebendo só agora, foi comigo mesmo.

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