Imagine um futuro no qual a Grande São Paulo é controlada por um grupo de empresários, que impõem políticas neoliberais, como a privatização, em boa parte dos serviços antes públicos. Do outro lado, grupos indígenas buscam resistir após perderem suas terras e, ao mesmo tempo, outros cidadães tentam sobreviver após longas jornadas de trabalhado. Este é o cenário da HQ “Acelera SP“, do quadrinista osasquense Cadu Simões.
Conhecido na cena por seus trabalhos nas histórias em quadrinhos do “Homem-Grilho” e “Cricket Rider”, entre outros, que o levaram a sair vencedor no Troféu HQ Mix 2008 na categoria Roteirista Revelação, Cadu teve a ideia de criar “Acelera SP” ainda em 2013. Entre esse ano e 2017, ele maturou a ideia até, buscando referências para poder elaborar o universo onde se passaria a história. No final do último ano, Simões conseguiu lançar a revista através de uma campanha de financiamento coletivo com mais de 266 apoiadores.
Disponibilizada gratuitamente na internet pelo PagSocial, plataforma por onde os leitores podem baixar o arquivo gratuitamente depois de compartilhar o projeto em suas redes sociais, a HQ reúne elementos da cultura cyberpunk, incluindo referências ao anime Akira e ao filme Blade Runner para apresentar um futuro distópico.
Vale citar também a elementos como o futurismo indígena – que se assemelha ao afrofuturismo visto em filmes como Pantera Negra – e o clima violento da Grande São Paulo neste universo. Confira a entrevista completa:
Nota Jornal: O grande público talvez conheça mais seu trabalho por conta das histórias do Homem-Grilo. Apesar de temáticas totalmente diferentes, você conseguiria apontar semelhanças entre as duas HQs?
Cadu Simões: De fato a temática entre as duas HQs são bem diferentes. Enquanto Acelera SP é uma ficção científica cyberpunk voltada para o público adulto, o Homem-Grilo é um super-heróis que mistura aventura e humor para um público infanto-juvenil. Talvez o que exista de comum entre elas, e que está presente em todas as minhas HQ, é a minha visão política em favor de valores como a coletividade, o compartilhamento e a colaboração, e a defesa de preceitos como os direitos humanos e a justiça social.
Em seu Facebook, você comentou que o tempo para pesquisar foi superior ao dedicado no desenvolvimento do roteiro. Isso já havia acontecido anteriormente ou é uma situação que ficou mais comum agora, no Acelera SP?
Normalmente eu costumo levar mais tempo pesquisando e elaborando a história do que escrevendo o roteiro em si. Mas em Acelera SP o tempo de pesquisa é muito maior, pois envolve muitos assuntos complexos e que não podem ser tratados de forma leviana, como desigualdade social, mobilidade urbana e precarização das relações trabalhistas.
Com quais influências, sejam elas de filmes, jogos ou livros, você contou na hora de criar o mundo em que se passa a história?
Bem, as principais referências para Acelera SP, além do nosso atual cenário político-social, é a literatura cyberpunk, seja em romances como Neuromancer, quadrinhos como Akira, RPGs como Cyberpunk 2020, ou filmes como o Robocop original.
Ao ler o Acelera SP é possível ver um cenário distópico, no qual São Paulo é controlada por empresários, inclusive com uma votação feita entre os acionistas para definir o novo CEO da cidade. Você acredita que algo assim possa acontecer ou é um futuro restrito aos universos cyberpunks?
Não acredito que possamos chegar ao extremo do ultraliberalismo mostrado em Acelera SP, ainda mais aqui no Brasil, onde os grandes empresários, banqueiros e especuladores financeiros são extremamente dependentes do Estado. Eles costumam pregar estado mínimo, mas, na verdade, isso é apenas para os outros (sobretudo os mais pobres que são os que mais precisam dos serviços públicos), pois para eles é estado máximo.
Se fosse realmente um livre mercado, sem nenhuma proteção ou regulamentação do Estado, os empresários e industriais brasileiros seriam destruídos pela concorrência internacional. Então a defesa que eles fazem do livre mercado é apenas da boca pra fora. Ainda mais quando falamos de privatizações de serviços públicos essenciais como o saneamento básico ou fornecimento de energia, não há de fato livre mercado nesses setores, mesmo se não houvesse Estado. Não é como se qualquer um pudesse montar uma distribuidora de água ou energia, e sair passando encanamento ou fios por aí (imagine a zona que seria).
Quando acontece a privatização desses setores, estamos apenas trocando o monopólio do Estado por um monopólio privado, e isso gera um problema, pois a função de uma empresa, diferente do Estado, é gera lucro ao seu dono ou acionistas. E pra isso se for preciso ela irar cortar custos, reduzir investimentos e pagar o menos possível aos seus funcionários pra atingir esse objetivo. Só que muitos serviços públicos são deficitários, pois não possuem demanda o suficiente, mas que são necessários e não podem ser interrompidos como é o caso do saneamento básico.
Se algo não está dando lucro em algum lugar, uma empresa privada possui a opção de simplesmente deixa de oferecer o serviço nesse lugar, o Estado não pode se dar ao luxo de fazer isso. Não é a toa que muitos serviços públicos que foram privatizados continuam sendo subsidiados pelo Estado, pois a população não pode ficar sem eles. E os empresários e acionistas que se tornaram donos desses serviços nunca tem prejuízo. É um negócio sem risco nenhum. Assim é fácil ser capitalista.
Por que criar a história em uma cidade “verdadeira” como São Paulo e não dentro de uma fictícia, como Gotham ou Neo-Tóquio?
Bem, por dois motivos. Primeiro, eu acho mais fácil escrever em um cenário que me seja conhecido, mesmo se for um cenário futurista. E segundo, Acelera SP trabalha com temáticas que estão intimamente ligados a realidade brasileira, e em especial a da grande São Paulo, como a questão da demarcação e homologação das terras dos guarani-mbya no Jaraguá. Então não haveria como ambientar essa história em outro lugar ou em uma cidade fictícia.
Quais relações você consegue enxergar entre a São Paulo de 2018 e a da HQ?
A principal relação é o aumento da mentalidade de que a solução é privatizar os serviços públicos que automaticamente eles iriam melhorar. E isso é uma falácia. A única solução para melhorarmos os serviços públicos é pressionando os nossos representantes políticos para que se comprometam a fazer isso através de leis, políticas públicas e maior investimento. Pois no Brasil a precarização dos serviços públicos não é por acaso, é um projeto intencional de políticos financiados pelo setor privado.
Quem por exemplo iria pagar plano de saúde, ou pagar uma escola particular para os filhos, se todos os hospitais públicos e escolas públicas fossem de excelente qualidade? Num cenário como esse, o setor privado de saúde e educação iria a falência, ou no mínimo perder muita grana. Então é por isso que os empresários ligados a esses e outros setores fazem lobby junto a políticos para manterem os serviços públicos o pior possível. Isso sem falar na promiscuidade entre o setor privado e o público, como acontece com as privatizações, onde os empresários só lucram, e os prejuízos são pagos pela população, como já citei.
Você já confirmou que está planejando novas histórias dentro desse mesmo universo. Além da questão da mobilidade, quais outros temas você pretende abordar dentro dessas sequências?
Na próxima história que já estou escrevendo os temas serão a proteção de dados digitais e a cultura livre. Mas ainda há diversos outros temas que pretendo trabalhar, além de explorar mais o funcionamento das Zonas Autônomas apresentadas na primeira história.