Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 1 em cada 6 idosos já sofreram algum tipo de abuso, como negligência, violência física, psicológica ou sexual.

O que ser quando crescer? Esta é uma pergunta simples, mas de resposta longa. Anos passam até chegar à vida adulta e nessa transição muita coisa pode mudar. Projetos são iniciados, concluídos ou até mesmo deixados de lado. As responsabilidades crescem em um ritmo acelerado e quando esta simples pergunta é enfim respondida, surge uma nova, ainda mais preocupante: o que ser quando envelhecer? Melhor dizendo: o que vai acontecer quando envelhecer?

O pedreiro aposentado José Antonio de Santana tem 83 anos e mora com sua esposa, Maria de Fátima, em uma casa simples no bairro Ermelino Matarazzo, Zona Leste de São Paulo. José é vítima de agressões constantes dos netos, tanto físicas quanto verbais. Sem condições de mudar de vida, o casal passa seus dias com medo da violência familiar. Fátima tem 57 anos e trabalha 12 horas por dia como segurança da CPTM. Acordar antes do dia clarear tornou-se rotina para ela. Sua carga horária faz com que o idoso fique sozinho em casa por longas horas. “Os espancamentos sempre foi quando eu totrabalhando”, explica fátima. Duas agressões aconteceram dessa forma.

O casal recebeu a equipe de reportagem de forma humilde. Improvisaram duas cadeiras com o que estava mais próximo. José pegou um botijão de gás já usado e o travesseiro que estava na sua cama. Fátima trouxe um balde de plástico e, antes de começar a entrevista, lamentou não poder fazer um café, já que a água havia acabado e para conseguir mais teria que ir até a casa da vizinha buscar.

José e Fátima moram em uma casa com dois cômodos, sendo um a cozinha e outro o quarto. Há cerca de um ano, o aposentado e sua esposa não tinham privada, muito menos chuveiro. Perderam a conta das vezes que tiveram que tomar banho de caneca e usar um balde para fazer as necessidades. A construção do banheiro só foi realizada pela exigência do serviço de assistência social, que acompanhou o caso do idoso.

José e Fátima passam seus dias com medo do que inimigo que mora ao lado, a família /     
Foto: Thais Uehara

Gravador ligado. Fátima explica que o marido possui deficiência auditiva e pede para a equipe falar mais alto quando as perguntas fossem direcionadas a ele. Em alguns momentos, José só compreendeu por meio de leitura labial. Os dois permanecem em pé. Enquanto o aposentado fica próximo ao tanque de lavar roupas, Fátima corre de um cômodo para o outro à procura de alguns documentos que, segundo ela, seriam úteis para a reportagem. Alguns minutos depois, retorna com uma pasta catálogo preta. Nela, estavam cópias de boletins de ocorrência, laudos médicos e documentos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

A posse de um terreno com menos de 50 m² servir de motivo para dois netos agredirem e ameaçarem o próprio avô parece história de ficção. Infelizmente, esta é a realidade na vida de José, que ainda acredita na justiça brasileira, ainda que pouco. Mesmo com dificuldades em entender as perguntas feitas pela equipe de reportagem, o aposentado mostrou-se decidido em falar sobre o ocorrido. “A mãe dele, que é minha filha, manda me bater e me matar, quer matar eu e minha esposa para ficar com isso aqui”, desabafa José, com o dedo indicador apontado para o chão de cimento.

Um dos episódios de agressão mais recentes aconteceu no dia 16 de setembro de 2017, mais de meio ano depois da medida cautelar ter sido aprovada, como mostram os documentos da pasta catálogo que Fátima procurou por alguns instantes no quarto. O aposentado aproveita que está de pé para mostrar algumas marcas das agressões no corpo. “Ele chegou de madrugada, jogou pedra em cima da casa, ai eu sai pra ver e perguntei pra ele porque ele tinha feito isso, ele veio para cima de mim, me deu seis pancadas”, descreve José enquanto procura algo dentro de uma sacola próxima ao quarto. Tira dela uma camisa rosa com algumas manchas escuras. Com a camisa estendida, o aposentado explica que estava vestido com ela quando foi agredido e que as manchas eram na verdade o sangue que ficou na peça.

José segura a camisa ainda ensanguentada enquanto lembra do último espancamento /     
Foto: Thais Uehara

A crueldade e a violência chocam muito. O casal explica que os espancamentos, xingamentos e danos à propriedade são constantes. Fátima aponta para uma janela próximo ao quarto dos dois e comenta que diversas vezes pedras foram atiradas nela, espalhando vidro quebrado para todos os cantos da casa. Na entrada da casa, a esposa mostra a porta amassada de tantos chutes dados. Fátima conta também que o idoso foi aconselhado, até mesmo pela justiça, a construir um muro na propriedade como forma de amenizar as agressões dos netos e da filha que moram no mesmo terreno. Impossibilitada de abandonar o emprego para ficar o tempo todo com José, a esposa arrisca sair de casa para sustentar o marido e ela.

A dificuldade é diária. Os dois batalham para solucionar o caso e seguir uma vida tranquila, sem riscos. Fátima, agora ao lado do aposentado, confessa que quer se aposentar o quanto antes para poder passar mais tempo ao lado de seu marido e protegê-lo. Enquanto isso, luta ao lado da lei para ter justiça, mas afirma que aos poucos também vai perdendo a fé. “O que mais fica difícil é que a lei não faz nada, deveria ter um pouco mais de atenção no idoso”, desabafa a esposa, que se recorda de uma vez em que traficantes do bairro foram até a casa de José e ameaçaram os agressores, que imediatamente cessaram a rotina de espancamentos.

Mesmo com uma medida de afastamento fornecida pela Defensoria Pública,que impede qualquer tentativa de aproximação de um dos netos do aposentado, José teme pelo pior. Sua história é apenas uma de muitas no Brasil. Antes da equipe de reportagem encerrar a entrevista, o idoso, com os olhos marejados e voz rouca, reforça que não quer vingança ou o mal de alguém. Seu único desejo é aproveitar sua aposentadoria merecida, reformar a casa e viver uma vida sem medos, ao lado da esposa.

Panorama de denúncias no Brasil

A população idosa cresce cada vez mais no Brasil. Só na última década, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou um crescimento de 26 milhões no número de pessoas acima de 60 anos, o que representa quase 15% da população. Em menos de dez anos, estima-se que esse número cresça no mínimo mais 12 milhões.

Cabelos brancos e a senilidade deixaram de preocupar quem é idoso no Brasil. O abandono e a violência infelizmente é uma realidade que cresce a cada ano no país. A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou no ano passado que 16% das pessoas acima de 60 anos em todo o mundo já sofreram algum tipo de violência, sendo as principais: agressão física, tortura psicológica e negligência. O abandono, ou descuido, ocupa um dos primeiros lugares entre as formas de violência contra o idoso no Brasil. Atualmente, 910 mil vivem sozinhos, número que triplicou nos últimos 20 anos, segundo o IBGE.

Dados do Disque 100, obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação, apresentam o número total de denúncias envolvendo a população idosa no país. Só no ano passado, o órgão do Ministério dos Direitos Humanos recebeu 33.133 denúncias, um aumento de 1,54% em relação a 2016.

O perfil das vítimas denunciantes é composto por 63,51% mulheres, 31,80% homens e 4,69% não informado, sendo entre 76 a 80 anos a faixa etária com maior índice de ocorrências. Em relação aos agressores, 42,84% são mulheres, 39,96% homens e 17,20% não foram informados. Os dados também mostram que mais da metade dos agressores são os próprios filhos e que a casa da vítima é o local mais frequente da violação.

Dentre os tipos de violência ao idoso, a negligência em amparo e responsabilização é a mais praticada, seguida de violência psicológica. Estados da região Sudeste, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, são os com maior índice de ocorrências.

Violência presenciada

Abrigos especializados no cuidado de idosos são alternativas para um melhor zelo com esta parte da população que aumenta no país. No estado de São Paulo, por exemplo, a versão mais recente do Relatório de Atendimento a idosos no Estado de São Paulo, pesquisa feita em 645 municípios pelo Ministério Público, indicou um total de 1.543 entidades responsáveis pelo cuidado de idosos. Deste número, 97% são de domínio privado e apenas 2% público. A média anual de idosos atendidos é de 40.311, sendo deste total 51% composto por mulheres (20.671), 35% homens (14.085) e 14% (5.555) não informado. A capital possui 420 casas de repouso, sendo 407 de domínio privado e 11 público. Mais de 10 mil idosos são atendidos por ano, sendo a maioria mulheres.

No entanto, estar em um abrigo não é garantia de segurança e conforto. A pesquisa também mostra que somente 26,63% (411) possuem licença sanitária, 41,15% (635) têm registro no CMI (Registro Municipal do Idoso) e 26,05% (402) estão com o alvará do corpo de bombeiros regularizado, percentuais com grande probabilidade de colocar em risco a segurança de idosos em abrigos.

Graziela Bocardi tem 32 anos e é cuidadora de idosos há 10. Já trabalhou tanto em abrigos quanto em residências particulares. Ela conta que viu uma idosa ser agredida há quatro anos. “Já teve caso de me contratarem para cuidar de uma idosa na própria residência e a filha tentou me fazer aceitar que os maus tratos contra a mãe dela era uma coisa normal”, revela. A vítima morreu pouco tempo depois em decorrência de uma parada cardíaca. Inconformada, Graziela denunciou a vítima mais de uma vez na Delegacia do Idoso. Mesmo com imagens e vídeos feitos por ela, a agressora não foi presa e continua na casa da mãe sem se preocupar com a justiça brasileira.

Atualmente desempregada, Graziela explica que possui muita experiência na área mesmo estando fora do mercado de trabalho. A cuidadora comenta que em seu último emprego seguia a carga horária 12×36 e ganhava mil reais de salário para atender uma média de 35 idosos. “Tanto na casa de repouso ou trabalhando na própria residência do pacientes somos muito mal remunerados”, desabafa ao afirmar que os profissionais desta área são pouco reconhecidos.

Cleonice Alves tem 52 anos e cuida de idosos em uma casa de repouso localizada em São Paulo. Ela faz plantões de 24 a 48 horas, auxiliando na alimentação, higiene e enfermagem. Cleonice critica a atitude de alguns cuidadores. “A arrogância de pessoas que estão ali pra cuidar e não pra gritar com o idoso. Ou até mesmo ficar falando que o idoso é inútil ou coisas assim. Eu nunca cuidei de ninguém que foi maltratado fisicamente, mas se um dia tiver alguma chance de cuidar farei com todo amor possível pra tentar amenizar a dor que eles sentiram”, comenta.

Como denunciar?

O ato de violência contra um idoso pode gerar desde multa até a prisão. O Artigo 98 do Estatuto do Idoso, criado em 2003, revela que abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei, o mandado tem como pena multa e detenção de seis meses a um ano. Em casos que a violência resulte na morte de um idoso, o agressor ou participantes do ato podem ficar até doze anos no cárcere.

A vítima ou alguém que tenha conhecimento de casos de violência pode denunciar através de canais de atendimento, como o Disque 100, ou ir até uma delegacia especializada em proteção ao idoso. Ao todo, a cidade de São Paulo conta com oito delegacias. A localização e horário de funcionamento de cada uma está disponível no portal cidadao.sp, do Governo do Estado.

Colaborou: Thais Uehara

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