Em Iturama, localizada a 750 km de Belo Horizonte, o líder religioso Diego de Logun foi obrigado a encerrar uma cerimônia de Candomblé antes de seu efetivo término.

O fato aconteceu no dia 26 de setembro deste ano. Às 21h30, do lado de fora de seu Ilê, local onde ocorrem os cultos candomblecistas, a Polícia Militar de Minas Gerais se preparava para entrar. Diego foi notificado por perturbação do sossego e teve seus atabaques, instrumentos litúrgicos, apreendidos.  Essa é a realidade que muitos fiéis de religiões afro-brasileiras enfrentam diariamente no país.

Em entrevista concedida ao Nota, o líder religioso descreveu o ocorrido. Ele disse que a denúncia partiu de um vizinho que mora a cinquenta metros de distância do Ilê Asé Omo Odé Egbe Logun Edé. Minutos após a ligação, a PM compareceu ao local. Um dos policiais conversou com Diego e disse que, se não diminuíssem o barulho, estariam retornando ao Ilê para apreender os atabaques. O culto candomblecista foi retomado.

Quinze minutos depois, a polícia voltou ao local e interrompeu a cerimônia para levar os atabaques. Um dos policiais informou a Diego que ele teria de ir ao fórum para ver o procedimento de recuperação dos instrumentos e se direcionar até a prefeitura para pegar um alvará que autorizava os cultos de candomblé.

Diego desconfiou da ação dos PM’s. “Eu questionei: então, toda quarta-feira tem sessão. Eu vou ter que todo dia ir atrás de alvará para eu ir tocando toda quarta-feira? O ato deles foi muito estranho, porque deixaram bem que não existe lei que nos defenda, que eu jamais poderia tocar. Nunca mais vou voltar a tocar se um vizinho chegar e me denunciar”, comenta.

Termo de compromisso assinado por Diego de Logun

Diego se manifestou nas redes sociais. Em seu perfil do Facebook, lamentou o ocorrido.


Pessoas que frequentam o Ilê gravaram o momento em que a polícia entrou e apreendeu os atabaques.

O que diz a lei?

Hédio Silva Júnior é advogado e defensor das causas relacionadas à intolerância contra religiões de matriz africana. Passou a acompanhar o caso após saber o que aconteceu ao Ilê Asé Omo Odé Egbe Logun Edé. O advogado criticou a atitude da Polícia Militar de Minas Gerais. “Não se interrompe culto religioso. A legislação proíbe, a não ser em casos muito excepcionais em que a polícia tenha elementos objetivos para acreditar que está ocorrendo um crime grave ali”, explica.

Hédio conta que para alguma autoridade notificar um líder religioso, deve-se aguardar o término da cerimônia e que a legislação municipal de Iturama proíbe barulhos somente após às 22 horas, sendo que os policiais entraram no Ilê meia hora antes do limite permitido.

O advogado também fez críticas sobre a denúncia feita pelo vizinho de Diego. “É preciso que várias pessoas reclamem de perturbação de sossego, senão não existe contravenção penal de perturbação de sossego”.

Sobre a apreensão dos atabaques, Hédio disse que a ação dos policiais é ilegal. “O Direito Internacional Público, a legislação brasileira, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário qualificam os instrumentos litúrgicos como patrimônio cultural. Não poderiam ter apreendido os atabaques”, explica.

O ato de intolerância religiosa repercutiu nas redes sociais. Procurado por fiéis de religiões de matriz africana, o advogado publicou em sua página pessoal do Facebook um vídeo comentando sobre o caso de Diego.


Somente nesta segunda, 08, Diego foi chamado para retirar os atabaques. Hédio e outros advogados entrarão com uma ação indenizatória pelos danos morais ao líder religioso.

A Polícia Militar de Minas Gerais e Prefeitura de Iturama não responderam aos questionamentos da reportagem.

Números da intolerância religiosa

Segundo o Disque100, portal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, a cada quinze horas é feita uma denúncia intolerância religiosa no Brasil. O gráfico abaixo mostra o número de denúncias realizadas entre 2011 e 2017.

São Paulo e Rio de Janeiro são os estados com o maior número de queixas no portal.

Religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, registraram um total de 634 denúncias entre 2011 e 2017. O ano de 2016 teve o maior índice de denúncias.

Ética antes da religião

A história de Diego foi acompanhada nas redes sociais por fiéis de religiões afro-brasileiras. Maria Elisa Trosdorf, 29, é umbandista e ficou sabendo do ato de intolerância religiosa através de grupos do WhatsApp. Ela conta que já foi vítima de preconceitos por conta de sua religião e criticou a ação da Polícia Militar de Minas Gerais.

“Invadiram o lugar, interromperam a cerimônia, recolheram os instrumentos. Por mais que eles não tenham o conhecimento do quão sagrado era aquilo que eles estavam interrompendo, eu não consigo imaginar a polícia tendo a mesma reação com outras religiões. Por que no terreiro eles podem fazer isso?”, comenta.

Maria nunca sofreu agressão física por ser umbandista, mas diz conviver diariamente com piadas de outras pessoas. “Sempre tive orgulho de carregar minha guia e falar abertamente da minha religião, porque foi na Umbanda que minha vida começou a melhorar. Onde a cada dia eu acordo uma pessoa melhor”, explica.

Sobre o que fazer para acabar com a intolerância religiosa, Maria vê apenas uma solução. “Eu acredito que a principal ferramenta de transformação do mundo é a educação. Não devemos discutir religiões antes de aprender ética. Quando se tem ética, aprendemos a respeitar as diferenças e só assim acaba com a intolerância”, finaliza.

Andreas Chamorro, 24, está há oito anos no Candomblé de Nação Ketu, vertente popular da religião. O praticante afirma ter presenciado e sofrido casos de intolerância religiosa. Chamorro chama a atenção para a forma como candomblecistas são julgados na sociedade por suas vestimentas e instrumentos litúrgicos. Olhares desconfiados e sussurros em grupos de amigos não o surpreendem mais.

“Um dia, eu e mais duas filhas de santo tivemos que ir urgentemente ao mercado para comprar azeite. Vestíamos branco e fios de contas no  pescoço. Nisso, chegando lá, o segurança do mercado não parava de seguir a gente por todo o estabelecimento”.

Andreas Chamorro, 24, Candomblé de Nação Ketu

Chamorro mudou de casa no ano passado devido a atos intolerantes dos próprios vizinhos, que elaboraram um abaixo-assinado para que o candomblecista saísse do local. “Como eu me vejo sendo visto perante a sociedade é assustador”, desabafa o praticante, que teme ser agredido fisicamente e não vê um desfecho próximo desta onda de preconceitos.

Joaquim Tavares, 32,  explica que já sofreu intolerância religiosa de pessoas do seu trabalho. Para ele, o diálogo é fundamental para acabar com os preconceitos. “Hora ou outra entre demais pessoas sempre ouvia piadinhas pejorativas sobre minha religião. Devemos compreender que cada um cultua e adora qual ‘Deus ou Deuses’ lhe convir”, sugere.

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